Pedagogo morreu há vinte anos, no dia 2 de maio. Mas suas ideias seguem inspirando o ensino em todo o mundo
Cícera aplica a abordagem com os alunos em Ipojuca. Thainá, à direita, quer ser professora e ensinar crianças da mesma maneira que aprendeFoto: Alfeu Tavares
A turma
inteira está sentada em cima de um tapete de lã, estendido do lado esquerdo da
sala de aula. Thainá segura um pequeno cartão de papel guache. A janela
desenhada na superfície chama a atenção da menina de 8 anos. Enquanto observa o
desenho, letras de madeira estão dispostas no chão, todas embaralhadas.
Curiosa,
a menina mexe as peças até encontrar a letra ‘J’, que vai formar a palavra em
sua completude. À frente da menina, através de uma janela real, se avista a
paisagem da mata fechada que denota a inacessibilidade do local. É em escolas
como esta, na Zona Rural de Ipojuca, a mais de 45 km da Capital Pernambucana
que as ideias de Paulo Freire mais são aplicadas.
Pela
abordagem freiriana, é importante alfabetizar e ensinar as pessoas de acordo
com sua própria realidade. Na escola Nossa Senhora da Soledade, a realidade das
crianças são as vivências na roça. Lama na estrada de barro causada pela
tempestade da noite anterior, coaxar de rãs, balouçar da cana-de-açúcar.
Por isso,
a professora Cícera Araújo sempre faz referências à vida no campo. Para uma
turma de alunos com idades diferentes como essa, a metodologia também traz bons
resultados.
"Dá
para trabalhar de forma interdisciplinar. Se eles têm galinheiros, por exemplo,
fica mais fácil produzir atividades e interagir quando o tema é a galinha”,
ressaltou. A perspectiva do pedagogo, contudo, não se limita a pensar a
alfabetização. “Pode ser aplicado para biologia, por exemplo. Exploramos e
aplicamos o conhecimento do cotidiano. Pescaria, plantações, frutas.” Para as
crianças, é um mundo que se abre. Tudo sempre existiu, mas só agora pode ser
representado e compreendido.
São as
aulas externas que mais movimentam os pequenos. Sorriem enquanto aprendem sob o
pé de acerola. Estreito e alto, tem galhos compridos que quase tocam o chão. As
frutas mancham de vermelho o chão e as roupas das crianças. Adriely Monique, 11
anos, estuda na mesma sala da sua irmã, Emily Raísa, 8, e a ajuda a colher as
acerolas, para participarem juntas da aula.
Elas
vivem na roça desde que nasceram. Para Adriely, estudar sobre as suas próprias
vivências é fundamental porque ela pode materializar o que estuda. “Em casa,
falo o que vi aqui na aula e todo mundo sabe o que é.”
A cultura
local também é estudada em sala de aula por eles. “Muitos dos livros são com
conteúdos de outros estados ou da Capital. É importante que eles saibam sobre o
que que permeia a história deles”, esclareceu Cícera. No último 19 de março,
dia de São José, as crianças plantaram milho para falar tanto sobre a evolução
da planta quanto para conhecer sobre a própria geografia da Zona Rural de
Ipojuca e Escada, cidade vizinha e cujos limites se confundem com frequência.
Influência ontem e hoje
Fim dos anos 1950 e a Capital pernambucana sequer dispunha de uma Secretaria de Educação. Os estabelecimentos de ensino municipais, por consequência, também não existiam.
Fim dos anos 1950 e a Capital pernambucana sequer dispunha de uma Secretaria de Educação. Os estabelecimentos de ensino municipais, por consequência, também não existiam.
Recife,
então, passou a testemunhar associações de moradores, clubes populares e até
prédio de liga de dominó sendo transformados em escolas improvisadas, voltadas
para alfabetização de adultos e à educação básica. A igreja e os grupos de
esquerda eram os responsáveis pela mudança. Tinham criado o Movimento de
Cultura Popular (MCP), com o ensino sendo um de seus tentáculos mais
importantes. E passaram a efervescer culturalmente a Cidade.
“Muito da
visão de educação e cultura era elitista na época. Era aquela ideia tradicional,
da música clássica, que não atingia o povo. Recife passou a mudar quando o MCP
passou a ver as coisas mais simples como cultura, também”, contextualizou o
professor de História do IFPB Dimas Veras. Freire naturalmente se tornou um
líder do braço educacional do MCP e sua teoria aplicada na prática da
alfabetização.
As
propostas de Freire eram confundidas com o marxismo, de acordo com Dimas. “A
confusão era alimentada pela formação da Frente do Recife, progressiva,
popular, que surgia naquele momento elegendo Miguel Arraes e Pelópidas
Silveira, que apoiavam o MCP.
Mas na
verdade, ele não era marxista, nunca falou a partir dos meios de produção e,
sim, da cultura. Ainda por cima, estava no MCP por ligação à igreja e não aos
grupos de esquerdas. Tinha um pensamento próprio.” Em 1964, o Sítio da
Trindade, em Casa Amarela, uma das escolas do MCP, foi tomado por militares e
uma fogueira improvisada em frente ao prédio consumiu o material didático que
havia.
“Na
época, havia uma polarização política semelhante à atual. Freire pensa numa
educação libertadora, quer autonomia da classe mais baixa, quer fazer com que
eles possam transformar a própria história, era tido como subversivo porque
isso poderia mexer no status quo social”, avaliou o professor.
“A história
se repete hoje, com Freire confundido por pessoas que não entendem que educação
é importante em qualquer sistema. Mas, enquanto houver desigualdade, Paulo
Freire vai continuar sendo um clássico”, finalizou Dimas, citando o pensamento
do pedagogo.
Fonte: FOLHAPE
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